" Temos que entender o que é indústria da moda e o que é indústria da roupa. A indústria da roupa só vira indústria da moda quando dialoga com a cultura "
Saiu ontem no Globo, e eu, como grande entusiasta de pesquisa, achei digno demais:
O estilista Ronaldo Fraga fala da capitalização do setor, que ganhou representação oficial em Brasília
RIO - Roupa não costuma ser assunto de intelectuais. O casamento de moda e cultura, porém, é fato consumado. No Rio, já se pode incluir projetos de moda nas leis de incentivo fiscal do Estado (com recursos do ICMS). E a secretária de Cultura, Adriana Rattes, está gestando o primeiro museu de moda do país, em parceria com a estilista Luiza Marcier. Entre os criadores, há muitos exemplos recentes da migração das passarelas para os museus: Jum Nakao expôs no MAM-RJ, em dezembro, a instalação "O sonho de Darcy" - ele que, no ano anterior, já tinha mostrado no MAM-SP um vestido feito de sacos de lixo, na mostra "Brasil-Japão", que teve curadoria do Museu de Arte Contemporânea de Tóquio. O mineiro Ronaldo Fraga está no Pavilhão das Culturas Brasileiras, no Ibirapuera, em São Paulo, com a exposição "Rio São Francisco navegado por Ronaldo Fraga". A mostra multimídia, com vestidos inspirados no Velho Chico, bateu recorde de público no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, onde esteve até janeiro: 42 mil visitantes.
Mas o mais importante passo para o reconhecimento da moda como cultura deu-se em Brasília. No final de novembro, o Ministério da Cultura empossou o Colegiado de Moda, formado por 15 representantes regionais, um delegado e um suplente - o estilista Ronaldo Fraga e o empresário Paulo Borges, respectivamente. Idealizador da Babilônia Feira Hype, Robert Guimarães ocupa o cargo de representante da região Sudeste. O que isso significa? A moda agora tem representação oficial no órgão máximo da cultura, o que a coloca no mesmo patamar da literatura, da música, do cinema ou das artes plásticas. A ministra Ana de Hollanda compareceu ao desfile de Ronaldo Fraga na São Paulo Fashion Week (SPFW), na semana que passou. Vai caber a ela criar mecanismos para viabilizar as propostas do recém-empossado Colegiado de Moda. Para o estilista, a moda pegou a trilha da cultura. E "é um caminho sem volta".
A moda agora tem representatividade no Ministério da Cultura. Como foi o processo para se chegar lá?
RONALDO FRAGA: Tudo começou na gestão do (Gilberto) Gil, quando foram mapeados vetores culturais não reconhecidos, como design, arquitetura e moda. O Juca Ferreira continuou o trabalho. Em 2010, participamos de uma reunião do Conselho de Política Cultural, ao lado da cultura, digamos, oficial. Em setembro, tivemos um seminário em Salvador só de moda, com a participação do ministro. A discussão: onde e de que forma o poder público poderia dialogar com a moda pelo viés da cultura. Teve muito bate-boca. O próprio setor não se via como cultura.
Se via como o quê?
As pessoas reivindicavam redução de impostos, por exemplo. Mas isso é com o Ministério da Fazenda. A moda tem uma linha dorsal interdisciplinar. Poderia estar no Ministério da Fazenda, da Ciência e Tecnologia, da Educação...
A moda sempre se encaixou na seara do comércio, da indústria. É, de fato, uma mudança grande de paradigma.
Mas é preciso mudar o olhar. Moda é muito mais do que fazer roupa. Pensando no cenário mundial, em que tempo é este em que nós vivemos, eu diria que vivemos numa época em que todas as regras ruíram. Os cânones desabaram. Temos que repensar o que é cultura.
Qual o resultado prático do seminário na Bahia?
O Colegiado de Moda foi reconhecido. O passo seguinte: definir as diretrizes para a moda no Plano Nacional de Cultura.
E que diretrizes são essas?
Procuro simplificar, porque os jargões oficiais complicam tudo. A primeira diretriz é cuidar da memória da moda. O acervo do Ney Galvão (estilista morto em 1991) está se deteriorando no sítio da família na Bahia. Ninguém conhece o legado do Dener, do Georges Henri... É legítimo que consigamos verba pública para falar da História do Brasil pelo viés da moda.
Quais as outras diretrizes?
Fomentar a capacitação e a pesquisa de moda.
Qual o papel da nova ministra da Cultura nesse cenário?
A Ana de Hollanda foi ao meu desfile na SPFW. Para mim, não existe chance de caminharmos para trás. Ela está engajada.
Mas qual a tarefa da ministra para dar continuidade ao processo?
O Juca (Ferreira) instituiu o Colegiado de Moda, como existem os colegiados das outras áreas da cultura. E a Ana de Hollanda terá que arrumar mecanismos, sancionar leis, para a concretização das diretrizes desse colegiado.
Como é fora do Brasil?
Na Inglaterra, na França, na Itália e no Japão, a "oficialização" da moda gera divisas. Começaram a pensar moda como cultura e a buscar a identidade - moda inglesa, moda francesa etc. - nos anos 80.
Esses são países que sempre tiveram tradição de moda...
Sim. Mas são países que também percorreram um caminho e hoje estão associados à cultura de moda, o que gera comércio, turismo, arte. Tudo passa pela capitalização do setor para além da roupa. Temos que entender o que é indústria da moda e o que é indústria da roupa. A indústria da roupa só vira indústria da moda quando dialoga com a cultura.
Vocês terão direito a lei de incentivo à cultura?
Claro. Tenho que poder entrar com um projeto para pleitear verba para um desfile, uma exposição. E não é só exposição. Há projetos como a Babilônia Feira Hype, no Rio, e o Hot Spot, em São Paulo, que são celeiros para a indústria criativa.
A nova ministra criou a Secretaria da Indústria Criativa.
No meu entender, essa secretaria pode dar a verdadeira estrutura para a economia.
Qual o caminho da moda brasileira até aqui?
A cultura de moda no Brasil começou mesmo nos anos 90, com eventos como o Phytoervas Fashion. Qual o legado desses 15 anos da SPFW? Para mim, deu autoestima para a gente se ver e se desejar como criadores.
Foi o começo da mudança de conceito?
Estamos caminhando. Tem uma frase marcante da Lina Bo Bardi, para mim uma das inventoras do Brasil moderno: "Sonho com o dia em que os talheres, os móveis, as roupas desse país tragam a referência da cultura brasileira." Com a globalização, dizem que temos que pensar em produtos universais. Mas tem o outro lado da moeda: o genuíno passou a ter valor. O sucesso da marca "Brasil" é a alegria, a jovialidade. E quem pode traduzir essa alegria é a moda.
Isso não é um clichê?
Nosso melhor produto é a alegria. Não adianta. E o brasileiro tem gosto por moda. Mesmo copiando, cria. A China só copia bem. Temos que correr, investir nos criadores. Os chineses investiram bilhões em escolas de design para se afastarem da imagem de copistas. Querem ser reconhecidos como criadores nesta década.
Estamos avistando uma nova era para a moda brasileira?
A gente tinha vergonha de dizer que "mexia" com moda. Vamos deixar de "mexer" com moda para ter a moda como ofício econômico e cultural, eu espero.
Fonte: O Globo
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